Na presença de Marina

Gabriel Abreu
8 min readSep 19, 2016

Atravesso o Hyde Park pelos seus caminhos de areia com as mãos enterradas nos bolsos. É verão em Londres, mas faz frio às 8 da manhã desse sábado. Caminho a passos largos, não quero me atrasar. Já deve haver uma fila na porta da Serpentine a essa hora, portanto não deixo que a cantoria dos pássaros que agora acordam prenda a minha atenção. Os imensos carvalhos vitorianos por todos os lados me confundem o caminho e demoro mais do que havia planejado. De qualquer maneira, às 9 da manhã em ponto estou na entrada lateral da galeria. Para minha surpresa, sou um dos primeiros. Depois de um “good morning” cordial, apoio-me em uma das barricadas dispostas ao redor do prédio e espero pelo momento em que a exposição Marina Abramovic: 512 Hours abrirá suas portas.

Eu conheci o trabalho de Marina pelo documentário Marina Abramovic: The Artist is Present (Akers & Dupre, 2012), que seguia a preparação e execução da última grande obra da artista, de mesmo título. Foi a primeira vez que ouvi falar em seu nome, mas na época Marina já era há tempos considerada a “avó da arte performativa”, estilo em que, dentre outras definições, o artista usa seu próprio corpo como objeto. Talvez minha ignorância se desse justamente pela característica de sua obra que Marina mais critica: a categorização de sua forma como alternativa. O seu status marginalizado havia me privado do conhecimento do trabalho da artista. Logo no começo do documentário percebe-se que o estigma havia acompanhado sua criação desde sua primeira performance em Edimburgo em 1973 (Rhythm 10, 1973), ainda então uma jovem recém-saída de seu natal Belgrado, até à mostra retrospectiva de toda sua carreira apresentada pela Meca da arte moderna, o MoMA (The Artist is Present, 2010). Marina regozijava o fato de ser finalmente “levada a sério” após 40 anos sendo considerada uma insana digna de um manicômio. Mesmo assim, era difícil deixar de perceber a perplexidade do público face aos vídeos que mostravam as performances passadas da artista, ou ainda frente aos outros artistas participantes da mostra que reencenavam as cinco maiores obras de Marina pelos andares do museu, grande parte delas feita em parceria com Ulay, o artista alemão com quem manteve um relacionamento tão dramático quanto suas performances juntos. A exposição passava pelos vários momentos de Abramovic nos passados 40 anos: desde sua predileção por desafiar seus próprios limites físicos e mentais, quando chegou a gravar uma estrela no abdômen usando uma gilete, até seu maior foco em interagir com o público, como na exposição no MoMA, em que artista sentou por dois meses e meio durante os horários de abertura do museu em uma cadeira frente a qual os visitantes, um por um, podiam sentar-se e, pelo tempo que quisessem, ficar na presença de Marina. Comum a todas essas diferentes explorações das possibilidades do corpo e da mente, Abramovic sempre tentou desbravar a relação entre artista e público. O preço pago durante toda sua carreira foi ouvir sempre a mesma pergunta: por que isso é arte?

Alguns instantes, somos quarenta e tantos, e eis que pela porta de vidro da galeria posso ver Marina. Instantaneamente, ela se torna real. De blusa branca e trança presa, ela passa um pouco de perfume atrás de cada orelha, vai em direção à entrada, abre as portas e nos dá as boas-vindas. Um a um, apertamos sua mão. As delas são grandes e ásperas, como espera-se que sejam as de um artista. Os olhos de Marina são intoxicantes e sinto que a conheço. Num indefectível sotaque sérvio, me dá bom dia em sua voz acalentadora. Os recepcionistas pedem que guardemos todos os nossos pertences nos armários próximos à entrada, bolsas e mochilas, câmeras e celulares, até nossos relógios — a noção de tempo ali é proibida. Nos dão um fone de ouvido, daqueles usados por funcionários de aeroportos que trabalham na pista junto às turbinas estridentes dos aviões. Mergulhado em silêncio, sigo adentro da Serpentine. A galeria tem uma sala principal, na qual diversas cadeiras estão dispostas na forma de um quadrado, dentro do qual há um pequeno tablado onde 8 ou 10 artistas meditam em um círculo, todos de preto e olhos fechados. As duas salas adjacentes estão vazias. Logo, os visitantes começam a se sentar nas cadeiras disponíveis, assumindo o papel da plateia. Eu prefiro ficar de pé, no fundo da sala. Marina também está conosco, aqui e agora, mas não faz nada além de observar os outros a observando. A luz da manhã entra por imensas janelas e todo o interior do prédio é coberto por um branco desnorteante. Não há nenhum quadro, nenhum objeto, nenhuma arte. Só eu, eles e Marina. Os olhares hesitantes dos outros visitantes me confirmam: não sou apenas eu que não sei o que está acontecendo. No entanto, ninguém aparenta estar intimidado. Pela falta de qualquer ação, parece que tudo pode acontecer. É então que vejo Marina caminhando em minha direção. Mal consigo conter a histeria do meu coração quando ela me oferece um grande sorriso e as palmas de suas mãos como quem diz “vem comigo?”

A dificuldade de grande parte do público em ver o trabalho de Abramovic como arte não é um desafio exclusivo das artes de performance. Muitos dos precursores da arte moderna sempre tiveram a validade de suas obras questionadas pelo nosso senso crítico. “Até eu poderia ter feito isso!”, clamam centenas todos os dias pelos museus e galerias do mundo em desafio ao cubismo desajeitado de Picasso, ás formas abstratas de Kandinsky, ao surrealismo confuso de Miró. Ainda mais ferrenhas são as críticas àqueles que parecem até estar tirando um grande sarro conosco, como Duchamp e seu mictório, Pollock e suas telas explosivas, ou Warhol e sua sopa de tomate. Indagamo-nos a respeito do motivo daquelas obras serem consideradas primas, de estares sendo expostas em tão respeitadas instituições, de serem consideradas imperdíveis por todos os guias que usamos para planejar nossas viagens. Sentimos que a simplificação foi levada ao extremo e nos frustramos com a aparente falta de técnica e esforço dos artistas, cujos quadros, esculturas e instalações pagamos para conhecer e cujo mérito, se não identificado por nós mesmos, nos faz sentir como analfabetos artísticos. Eu também fiquei perplexo assistindo a vídeos de Marina e Ulay dando tapas na cara um do outro. No entanto, ao invés de descartar aquela cena como lixo, me dei a chance de pensar por um momento em qual seria a mensagem ali transmitida. Se há de se haver algo querendo ser expressado em todas essas obras, não devemos a nós mesmos a oportunidade de analisá-las? Os grandes movimentos artísticos ocorridos desde o final do século XIX têm em comum o ânimo para desafiar o status quo e sua incapacidade de responder às nossas necessidades expressivas. Por terem quebrado tradições confortáveis, muitos desses artistas tiveram seu trabalho depreciado por seus contemporâneos. O Impressionismo de Manet e seus refusés não tinham espaço na Academia Real de Pintura e Escultura francesa; Gauguin, van Gogh e Cézanne foram todos vistos como excêntricos perturbadores da ordem que não chegariam a lugar algum; Matisse teve suas cores contrastantes ridicularizadas pelos críticos como fauves, bestas selvagens cujo habitat não podia ser o Salon d’Automne. Sua arte era hostil e suas inovações incompreensíveis, mas elas satisfaziam um desejo incontrolável de se libertar da representação fiel do objeto e de ter a chance de expressar sentimentos confusos e misteriosos além do óbvio e tacanho. Da mesma forma, o contemporâneo continua lavrando essa multiplicidade artística que cultiva as mais diferentes interpretações da experiência humana. O mérito do moderno e do contemporâneo está justamente em suas possibilidades, e o de Marina, em explorá-las. É provável que ao invés de, intimidados pelo incomum, a taxarmos como selvagem, seja mais enriquecedor tentar entender seu trabalho como a exploração das questões que o definem.

Mãos dadas, Marina me leva a uma das salas laterais da galeria e faz um sinal para que eu tire os meus fones de ouvido, o que ela já fez. “Tudo bem?”, me pergunta. Digo que sim com a cabeça e ela segue falando em um sussurro quase secreto: “sua tarefa de hoje será andar em slow motion. Quero que você atravesse essa sala andando o mais devagar possível, por sete vezes. A repetição é importante, pois nas primeiras vezes seu corpo estará devagar, mas sua mente continuará como uma Ferrari. Quero que seus pensamentos se movam na velocidade de seu corpo. Vamos, a primeira travessia faremos juntos.” Recolocamos nossos fones, ela pega-me novamente pela mão e juntos atravessamos a comprida sala em passinhos. A cada um deles, eu sinto o peso do meu corpo sustentado por meus pés. Sinto a minha pressa ser calada pelo controle de Marina, que me segura quando estou rápido demais. Toda minha atenção está em controlar meus passos, deixo de lembrar que Marina Abramovic está ao meu lado, segurando minha mão. Toda sua celebridade não tem espaço nesse momento, somos só eu e ela. Marina logo me deixa para que eu continue sozinho e a lentidão dos meus movimentos entorpecem a minha consciência. Sinto-me em um transe e chego até a duvidar de que conseguirei parar após o fim da tarefa. Consigo, e levantando a cabeça me deparo com outras dezenas de pessoas imersas em suas atenções.

Marina sempre defendeu a ideia de que a essência da performance é o estado de espírito do performer. Para que o artista seja física e mentalmente capaz de ficar horas sem se mover sentado em uma cadeira, por exemplo, é essencial que ele entre em um outro plano de sua consciência, um estado meditativo em que tédio, dor e desejo homogeneízem-se em ruído de fundo. Marina entende os benefícios que essa desaceleração da mente pode trazer àqueles que a praticam e tenta dividi-los com seu público. Na verdade, todo seu radicalismo reduz-se simplesmente a questões metafísicas que permeiam a nossa existência. Por que é que damos mais valor à arte que consideramos bela? Por que nos sentimos tão incomodado em ver seres humanos comportando-se como selvagens? Por que é que nos incomoda tanto ficar sem fazer nada? A reputação de Marina traz quase um milhão de pessoas ao MoMa e, estando em sua presença, vemos a estranheza perante o incompreensível transformar-se em experimentação ontológica. O documentário sobre a exposição de Marina em Nova York mostra muitos dos visitantes chegando às lágrimas durante o seu tempo com a artista. O sentimento, ela explica, vem do fato de que, a partir de certo ponto, a performance não se trata mais de Marina, mas sim da pessoa que está à sua frente. Despindo-nos de quaisquer elementos que nos são familiar, como o tempo, Marina torna-se um espelho de nós mesmos, cujo reflexo não estamos acostumados a ver. A renúncia das qualidades supérfluas que nos definem como homens e mulheres de nossa época cria um vácuo no qual tornamo-nos seres elementares, presentes de corpo e alma. É nessa ausência criada por Marina que encontramos a sua, e logo a nossa, presença. A experiência é efêmera, porém preciosa, pois nos usando como objetos nos revela uma fração da natureza humana. E como questionaria Klaus Biesenbach, curador do MoMA durante a exposição de Marina, o que é a arte além disso?

Sigo para a última sala, onde os visitantes participam de uma outra atividade. Na entrada, um ajudante me entrega uma venda e me ajuda a amarrá-la sobre meus olhos. Entro em uma total escuridão de sentidos. Caminho quase tão devagar quanto à maneira de Marina, braços estendidos tateando o breu. O espaço agora é imenso, a ausência não tem limites. Perdido no nada, sinto cada vez mais evidentes os confins do meu corpo, as fronteiras do meu ser. Torno-me fortaleza, existo sozinho e seguro. De repente, pele. O toque é elétrico e excita a curiosidade. As mãos logo se procuram e os dedos se entrelaçam. O afeto é anônimo, mas comum e palpável. Presenciamos um ao outro. Detenho-me naquele novo universo por muito tempo até que decido voltar a ser quem penso que sou. A caminho da saída ainda enxergo Marina entre muitos outros em pé no tablado, agora todos dispersos, no que parece uma profunda autocontemplação. Deixo os meus fones de ouvido na recepção, pego minha mochila e saio pela porta por onde entrei. A respeitável natureza inglesa rebenta em verde nos meus olhos e eu já escuto o barulho dos carros em Knightsbridge.

gabrielabreu

--

--