imagem:linguagem:memória

Gabriel Abreu
2 min readOct 14, 2016

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Ter um balde de água gelada jogado sobre nossas cabeças talvez seja a única sensação que consiga nos remeter às emoções explosivas da infância. A imagem do líquido glacial cobrindo a pele morna num arrepio quase nevrálgico dá vontade de gritar, pular, correr, jogar as mãos aos céus! Ou ainda, como para as criaturinhas da foto acima, de sorrir. E em seus sorrisos incontroláveis, de bater o queixo, eu também não consigo não sorrir. Sou sempre tomado pela ideia de que talvez esse tenha sido um daqueles melhores momentos da vida que passam despercebidos. Ter a foto é uma sorte, sorte de ter registrado para sempre um instante de total descompromisso. A câmera ainda capta o olhar de um dos meninos, mas ambos mal prestam atenção ao fotógrafo. Apenas aguardam, de potinhos em punhos, por mais água! Fora a sua festa, são alheios a tudo.

Mal se dão conta da anciã, fonte de seu júbilo. Pouco percebem que ela esparsa o jorro que cai da jarra de plástico para proteger seus corpinhos num afeto tão sútil que só de avó. Não observam o seu próprio regozijo, estampado em um sorriso escondido atrás da brincadeira. Reparam menos ainda na existência da senhora de pernas serenamente cruzadas ou nas duas silhuetas que aparecem ao fundo, dois homens servindo-se em silêncio do espeto de carne disposto no meio da mesa entre eles. O contraste entre a alegria dos meninos em primeiro plano e a taciturnidade dos homens ao fundo é para mim a própria essência da fotografia, figurando a perda da inocência durante a vida. Como as crianças, os dois senhores passam a tarde de torsos nus, mas esses não são mais leves e radiantes, porém curvados e sombrios. Nenhum dos dois sorri mais, apenas mastigam a carne fibrosa do churrasco em meio à escuridão. Ainda noto aquele mais à direita mirando de muito, muito longe a felicidade dos miúdos em uma nostalgia quase amarga. São o exato oposto das criaturinhas e, ainda assim, o seu futuro.

Apesar da realização trágica, os sorrisos infantis triunfam e ficam gravados na memória. Só então me lembro de que a fotografia foi tirada durante uma tarde de verão indistinta na cidadezinha de Passo Fundo, um local de nome aqui apropriadamente remoto. Dou-me conta de que a representação da felicidade na imagem, que agora é uma preciosidade, é curiosamente resultado dos dias passados à toa, de calção de banho e descalços sobre um pátio de pedras molhado.

E então sorrio de novo.

gabrielabreu

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